Em dezembro de 2023, foi aprovada a tão esperada reforma tributária dos impostos sobre consumo, com a publicação da Emenda Constitucional nº 132/2023. O novo regime tributário gira essencialmente em torno da criação de dois tributos sobre o consumo: o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), com competência partilhada entre estados, Distrito Federal e municípios, que foi criado para substituir e consolidar a tributação dos atuais ICMS (imposto estadual sobre a circulação de mercadorias) e ISS (imposto municipal sobre serviços) e a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), que visa consolidar e substituir a tributação dos atuais PIS e COFINS (contribuições federais).
Há também a criação do IS (Imposto Seletivo) em substituição ao IPI (imposto federal sobre produtos industrializados). Este último, a partir de 2027, passará a ter suas alíquotas reduzidas a zero (0%) sobre todos os produtos, com exceção apenas dos produtos industrializados na Zona Franca de Manaus (ZFM), região incentivada que permanecerá sujeita a tratamento tributário específico.
Como regra geral, o IBS e CBS incidirão sobre uma base ampla das operações com bens e serviços, tendo como princípio a não cumulatividade plena, bem como a garantia da neutralidade da reforma para não acarretar aumento da carga tributária sobre a economia. Ambos os tributos devem ser regulados por meio de uma única lei complementar, incidindo de forma similar e conjunta, cumprindo o princípio de um verdadeiro IVA – Dual.
As alíquotas serão definidas por Resolução do Senado Federal, sendo que no caso do IBS, essa resolução fixará as alíquotas de referência para cada esfera federativa, e cada estado e município definirá sua alíquota própria. Atualmente, fala-se de uma alíquota total para os dois tributos em torno de aproximadamente 27% a 27,5%, uma das alíquotas mais altas do mundo para o IVA. Importante notar que esses tributos passarão a ser devidos aos estados e municípios de destino (consumo) dos bens e serviços.
Já o IS é um imposto que incidirá sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. É um imposto extrafiscal e incidirá apenas em uma única transação ao longo de toda a cadeia do produtiva (monofásico).
Dentre as diversas expectativas geradas pela reforma tributária, talvez as mais relevantes sejam: (i) a possibilidade de se conseguir, uma vez transcorrido o período de transição fixado pela lei, a tão esperada simplificação da legislação dos tributos sobre o consumo, facilitando o faturamento das vendas tanto no âmbito interno quanto nas operações de exportação e importação; (ii) reduzir significativamente a multiplicidade de alíquotas existentes no país para cada produto; e (iii) acabar com a guerra fiscal entre estados e municípios no país.
Especificamente em relação ao Agronegócio, esse setor sempre teve um regime tributário diferenciado no que se refere à tributação sobre o consumo, principalmente em relação às exportações. Isso se deve ao fato de o Brasil ser um país tipicamente exportador de commodities, conferindo ao agronegócio uma relevante importância na sua economia e no seu PIB. De acordo com a CNA (Confederação da Agricultura e da Pecuária do Brasil), em 2022, a cadeia do agronegócio representou aproximadamente 24,8% do PIB brasileiro, 23,9% dos empregos gerados no país e 47,6% das exportações.
Diante desse cenário, o setor, por meio da CNA, foi bastante atuante nas discussões do projeto de lei para a reforma e conseguiu garantir o tratamento diferenciado positivo para o agronegócio em vários aspectos:
- IBS, CBS e IS não incidirão sobre as exportações;
- Não incidirá IE (Imposto de Exportação) sobre as operações de exportação;
- Ficará assegurado tratamento diferenciado para as cooperativas, hipóteses em que esses tributos não incidirão sobre as operações realizadas entre as sociedades cooperativas e seus cooperados e entre as cooperativas entre si, bem como foi permitido às cooperativas o aproveitamento dos créditos desses tributos das etapas anteriores;
- Criação da Cesta Básica Nacional, sujeita à tributação à alíquota zero (0%) pelo IBS e CBS;
- Criação do regime diferenciado com redução de 60% das alíquotas do IBS e CBS para produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas in natura, bem como para insumos agropecuários, aquícolas e alimentos;
- Lei complementar poderá, ainda, estabelecer redução em 100% das alíquotas do IBS e da CBS sobre operações com produtos hortículas, frutas e ovos;
- O produtor rural pessoa física ou jurídica que auferir receita bruta anual inferior a R$ 3.600.000,00 e o produtor integrado, conforme definido em lei, não estarão obrigados a ser tributados pelo novo regime do IBS e CBS e poderão optar, ou não, por esse regime;
- O IS não poderá incidir sobre os produtos agropecuários que integrarem a Cesta Básica Nacional e nem sobre produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas in natura, bem como sobre os insumos agropecuários, aquícolas e alimentos, que estiverem sujeitos à tributação pelo IBS e CBS às alíquotas reduzidas;
- Foi estabelecido regime fiscal favorecido para os biocombustíveis, para IBS e CBS, como também para os atuais PIS e COFINS, ICMS; mantendo-se o direito aos créditos dos insumos;
- O IPVA não incidirá sobre aeronaves para pulverização agrícola, tratores e máquinas agrícolas;
- Parcela da receita do IBS e da CBS incidentes na aquisição de produtos alimentícios será devolvida aos consumidores de baixa renda, por meio de cash back.
Não há dúvidas que essas são medidas específicas que tendem a beneficiar os produtores rurais e a agroindústria, visando amenizar o efeito do aumento da carga tributária sobre a competitividade e a rentabilidade das empresas do setor.
Todavia, apesar desses aspectos positivos, o setor do agronegócio continua preocupado quando se fala sobre a reforma tributária. Em primeiro lugar, porque embora o Governo Federal tenha assegurado à sociedade que o objetivo da reforma não era aumentar a carga tributária sobre o consumo, na verdade, um estudo realizado pelo Centro de Estudos do Agronegócio da FGV juntamente com a CNA em outubro de 2023 demonstrou que essa reforma deverá gerar um aumento da relação entre a carga tributária e o PIB do país, o que representará um aumento da arrecadação fiscal. Em outras palavras, pode-se dizer que na realidade a reforma não será neutra e espera-se que, ao final, a carga fiscal sobre a cadeia produtiva fique maior do que a atual, o que deve impactar os custos e, consequentemente, os preços dos produtos e serviços do setor, mesmo com a aplicação da diferenciação de alíquotas para os produtos do agro e da cesta básica.
Além disso, surgiram outros aspectos negativos relevantes que afetam o agronegócio e os produtores rurais:
- Foi criado um período de transição de sete anos para que a mudança para o novo regime tributário ocorra de forma gradativa. Nesse período, que se inicia em 2026 e irá até o final de 2032, os produtores e empresas do setor terão o desafio de conviver, atender e recolher tanto os tributos atuais (ICMS, IPI, PIS, COFINS e ISS) quanto os novos tributos (IBS e CBS), aumentando a complexidade na administração tributária dos regimes;
- Produtores rurais que hoje faturam entre o limite acima de R$ 3.600.000,00 e R$ 4.800.000,00 (limite dos produtores obrigados à entrega de Livro Caixa Digital do Produtor Rural – LCPD) passarão a ser obrigatoriamente contribuintes do IBS e da CBS, aumentando suas obrigações tributárias e respectiva carga fiscal;
- A reforma também permitiu que os estados instituam contribuições estaduais sobre produtos primários e semielaborados para o financiamento de fundos destinados a investimentos em obras de habitação e infraestrutura, desde que já possuíssem esses tipos de fundos em 30 de abril de 2023, o que representa mais um custo para o setor;
- O ITCMD (Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis ou Doações de Bens e Direitos) passará a ter alíquotas progressivas em razão do valor do quinhão, legado ou doação, podendo elevar a carga tributária nas transferências das propriedades rurais nos casos de sucessão familiar e nas pequenas propriedades rurais, fomentando o êxodo rural, em caso de falta de recursos para pagar o tributo;
- O IS será integralmente instituído por meio de lei complementar, ainda não se sabe sobre quais produtos do agronegócio ele irá incidir, nem as alíquotas aplicáveis, o que deve ser motivo de atenção para toda a agroindústria, seja produção de fertilizantes, alimentos, bebidas, têxtil ou qualquer indústria que faça parte da cadeia do agronegócio depois da porteira, pois pode afetar o custo de produção;
- Outro ponto que tem preocupado produtores e empresas do agronegócio de diversas partes da cadeia, inclusive exportadores, refere-se à regulação pela legislação complementar da sistemática de utilização dos créditos, incluindo a utilização e ressarcimento dos créditos acumulados de ICMS, IPI, PIS e COFINS, bem como as hipóteses de manutenção e utilização desses créditos no regime de tratamento tributário diferenciado e sujeito à alíquota zero (0%). Embora a intenção da reforma tenha sido garantir a utilização, compensação e ressarcimento desses créditos para assegurar a não cumulatividade plena nos tributos, é certo que a redação do texto da EC 132/2023 criou inseguranças aos contribuintes, pois deixou toda a regulamentação dessa matéria a cargo da legislação complementar, introduzindo possibilidades de restrições na utilização e compensação desses créditos que anteriormente não estavam previstas na esfera constitucional e que, nesse sentido, podem ser consideradas como um retrocesso da legislação;
- Pretende-se incluir na legislação complementar da reforma um dispositivo específico estabelecendo que as máquinas e equipamentos destinados à produção agropecuária também estarão dentro das hipóteses específicas de alíquotas reduzidas do IBS e da CBS. Caso essas máquinas e equipamentos fiquem sujeitos à alíquota padrão, suas aquisições passarão a gerar acúmulos de créditos nas empresas, onerando os custos de produção;
- Por último, menciona-se a alteração das regras que determinam que o IBS e a CBS serão devidos aos Estados e Municípios de destino dos bens e serviços comercializados. Isso tende a deslocar e reduzir a arrecadação dos Estados e Municípios de produção, onde geralmente os produtores estão situados, para os Estados e Municípios onde os compradores/consumidores estão localizados. A princípio, os Estados dos produtores perderiam arrecadação e acabariam muito dependentes das decisões sobre a repartição de receitas pelo novo Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços.
Assim, diante dessas incertezas sobre aspectos tão fundamentais para a tributação da cadeia produtiva, tanto pré-porteira como no pós-porteira das fazendas, somadas ao possível aumento da carga tributária e às expectativas de inflação crescente e consequente redução do consumo da população, é compreensível a preocupação dos membros do agronegócio com a reforma.
De fato, esses aspectos, inviabilizam a avaliação de um cenário mais positivo, com aumento de produtividade para o agronegócio decorrente de benefícios gerados pela reforma tributária. No futuro, com a promulgação das leis complementares que criam e regulam os novos tributos com esclarecimentos sobre o regime de transição, será possível apurar eventuais benefícios que essa reforma possa gerar ao setor, inclusive em termos de competitividade e rentabilidade de suas empresas.
Artigo escrito por Adriana Bandeira de Mello, advogada tributarista em São Paulo, formada e especializada em direito tributário pela PUC-SP, com MBA em economia pela FIPE e mestrado em economia pela EESP-FGV.