Na atualidade, a inclusão e a diversidade são temas cada vez mais discutidos no ambiente corporativo. A neurodiversidade, em particular, destaca-se como um conceito fundamental para a promoção de ambientes de trabalho inclusivos e inovadores. Débora Cunha Romanov, advogada no Vilarinho Advogados e professora na Escola Paulista de Direito, esclarece que a neurodiversidade está relacionada à compreensão de que as pessoas possuem diferenças cognitivas e emocionais. “Cada indivíduo percebe o ambiente e os estímulos ao seu redor de maneira única, com maior ou menor intensidade”, afirma. Essas diferenças, conhecidas como “neurodivergências”, incluem variações no funcionamento cognitivo, afetivo e sensorial, que diferem do padrão estabelecido para a maioria da população, os chamados “neurotípicos”.
Débora destaca que a neurodiversidade está alinhada com o modelo social da deficiência, que vê a deficiência como um produto da cultura e sociedade, e não uma questão individual. “São fatores ambientais e sociais que levam à desigualdade e exclusão, criando barreiras para a inclusão real”, ressalta Débora, mencionando a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015). Inicialmente, a neurodiversidade surgiu na década de 1990, associada especificamente às pessoas autistas (ou com Transtorno do Espectro Autista – TEA), mas atualmente outras neurodivergências, como Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), dislexia, discalculia, Síndrome de Tourette, Altas Habilidades e Superdotação (AHSD), também são consideradas.
Entretanto, nem todas as neurodivergências são consideradas deficiências legais no Brasil. O autismo, por exemplo, foi reconhecido como deficiência pela Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012). Com essa lei, as pessoas autistas se tornaram titulares de todos os direitos assegurados às pessoas com deficiência, incluindo a contratação para fins de cumprimento da Lei de Cotas (Art. 93 da Lei nº 8.213/1991). Para essa finalidade, de acordo com as orientações do Ministério do Trabalho e Emprego, o autismo é considerado uma deficiência mental/psicossocial.
Para apoiar profissionais neurodivergentes, Débora sugere que o primeiro passo para que uma organização consiga apoiar profissionais neurodivergentes é conhecer melhor a respeito da neurodiversidade, do autismo e das neurodivergências em geral, considerando a proposta trazida pelo movimento da neurodiversidade e o modelo social da deficiência. “Isso é essencial porque, de acordo com os resultados da pesquisa que conduzi recentemente para o Mestrado em Administração de Empresas na Universidade Presbiteriana Mackenzie, um dos principais desafios apontados por profissionais de gestão de pessoas para a empregabilidade de profissionais autistas é o desconhecimento ou a compreensão limitada do tema pelos gestores e demais colegas neurotípicos. Em especial, quando se fala do autismo, é comum que a percepção seja baseada em certos mitos, especialmente sobre restrições na interação social e na comunicação, construídos e reforçados por filmes e outras representações midiáticas”.
Ela destaca a necessidade de reconhecer a individualidade de cada pessoa neurodivergente. Uma vez que cada pessoa neurodivergente é única e pode necessitar de apoios específicos para garantir a sua acessibilidade no ambiente de trabalho. Esses suportes não podem ser aplicados de maneira generalizada a todos os profissionais neurodivergentes, como se fosse uma regra. Por isso, além de conhecer a neurodiversidade como conceito, é fundamental compreender as necessidades da pessoa neurodivergente que se pretende contratar ou que já foi contratada.
Como as empresas devem tratar as neurodivergências?
Débora reforça a importância de treinamentos específicos para diferentes níveis dentro da organização com relação as neurodivergências. “A primeira etapa de um treinamento para apoiar um empregado neurodivergente deveria ser voltada para a Alta Administração, lideranças e gestores. O objetivo é aprimorar o conhecimento sobre neurodiversidade, autismo e neurodivergências além do senso comum, e trabalhar na compreensão de que existirão individualidades e particularidades de cada pessoa neurodivergente. Regras gerais podem não atender às necessidades de todos os empregados neurodivergentes de uma organização.”
Ela também enfatiza a importância de incluir as equipes no processo de treinamento. Uma vez que esses treinamentos devem ser implementados para equipes que receberão profissionais neurodivergentes pela primeira vez ou que já possuem colegas neurodivergentes. É crucial que percebam que eventuais diferenças na rotina de um profissional neurodivergente são, na realidade, apoios necessários para reduzir as barreiras à inclusão no trabalho, e não privilégios. E ainda a necessidade de uma abordagem contínua. “A recorrência de treinamentos dessa natureza é relevante, para que a neurodiversidade seja realmente discutida pela organização e incorporada às suas práticas e, posteriormente, à própria cultura organizacional.”
Débora pontua a importância de revisar práticas de gestão de pessoas para promover a inclusão de funcionários neurodivergentes nas empresas. “De início, recomendaria a revisão de todas as práticas de gestão de pessoas que tenham sido previstas para um empregado neurotípico, ou seja, que foram formuladas com base em padrões regulares de comportamento esperado em um ambiente empresarial.” Para ela, se as ‘regras do jogo’ forem essas, uma pessoa neurodivergente sempre encontrará inúmeras barreiras para conseguir minimamente se manter empregada, faltando os apoios necessários para a acessibilidade ao ambiente de trabalho. A organização corre o risco de perder profissionais que possuem muita competência técnica e vontade de trabalhar, mas que estão sendo avaliadas por uma ‘régua’ que não se aplica a eles, deixando-os em constante desvantagem.
A adaptação de práticas deve abranger vários aspectos do ambiente de trabalho. “Essa adaptação envolve desde o desenho do trabalho em si, passando pelos processos de recrutamento e seleção, contratação, integração do profissional (onboarding), treinamentos para fins de desenvolvimento, parâmetros para avaliação de desempenho e ações para o bem-estar e relações com os demais colegas de trabalho,” avalia Débora.
Além disso, sugere a promoção de ações internas que facilitem a interação entre profissionais neurodivergentes e neurotípicos. “É importante fomentar internamente ações que viabilizem a interação e a convivência tanto de profissionais neurodivergentes quanto neurotípicos. Iniciativas como palestras, rodas de conversa, grupos de afinidade, entre outras, são essenciais para que todos possam participar, discutir assuntos de interesse e criar novos relacionamentos no ambiente de trabalho.”
Ao adotar essas práticas, as empresas podem criar um ambiente mais inclusivo e equitativo, garantindo que todos os funcionários, independentemente de suas neurodivergências, tenham oportunidades iguais para prosperar e contribuir com suas habilidades únicas.
Outra questão é que as empresas podem, e devem, medir o sucesso das iniciativas de inclusão da neurodiversidade e os benefícios que essa inclusão pode trazer para a organização. “Esse é um ponto interessante para se discutir,” afirma Débora. “Diferentemente de outros aspectos de diversidade, como os relacionados a gênero, raça e etnia, as neurodivergências são características ocultas que dependem, muitas vezes, da opção de o profissional revelar ou não no ambiente de trabalho. Consequentemente, a definição apenas de metas para a contratação de mais profissionais neurodivergentes em um determinado tempo não necessariamente significaria, a meu ver, sucesso de uma iniciativa de inclusão direcionada à neurodiversidade.”
Conforme sua pesquisa conduzida para o Mestrado, muitos profissionais neurodivergentes não se sentem confortáveis em revelar seu diagnóstico de autismo por receio de falta de compreensão, estigma, preconceito e discriminação. “Outros já indicaram a percepção de que teriam sido desconsiderados de processos seletivos e de recrutamento simplesmente por terem anunciado publicamente que são pessoas autistas. Também ouvi alguns relatos de pessoas neurodivergentes que tinham a sensação de que somente tinham conseguido progredir na carreira por terem escondido suas neurodivergências”, pontua Débora.
Alguns profissionais neurodivergentes sentem que estão constantemente reiniciando suas carreiras por não conseguirem avançar onde estão, devido à ausência de um plano de carreira ou à falta de métricas de avaliação adaptadas. Até estão contratados, mas sentem que estão estagnados. Ao procurar novas vagas, relatam que somente encontrariam posições de entrada ou operacionais destinadas a pessoas com deficiência, que não corresponderiam à sua experiência profissional ou nível de estudos e formações concluídas.
Ela alerta para as consequências negativas desse cenário, que impactam a saúde mental das pessoas neurodivergentes, podendo gerar quadros de depressão e burnout. “Então, penso que o primeiro fator que poderia indicar o sucesso de iniciativas de neurodiversidade e inclusão seria o fato de uma organização ter contratado profissionais neurodivergentes que não sentem receio de ser quem são e de agir como querem, podendo assumir suas neurodivergências sem medo de retaliação ou incompreensão. Além disso, profissionais neurodivergentes que pudessem atuar em suas carreiras de escolha, sentindo-se reconhecidos pela organização e cientes de que possuem um plano de carreira traçado para o seu crescimento.”
No que diz respeito aos benefícios, Débora menciona pesquisas que indicam o aumento da criatividade, da inovação, da produtividade e de outras vantagens competitivas associadas à contratação de profissionais neurodivergentes. “Principalmente pelo fato de serem pessoas capazes de pensar de forma diferente e inovadora, ‘fora da caixa’, caso recebam os apoios necessários e sejam compreendidos em suas particularidades. Mas acredito que ainda há muito mais a descobrir, à medida que os estudos científicos envolvendo a neurodiversidade avancem no país e que mais e mais organizações tenham interesse a respeito do tema.”