No auspicioso contexto da Reforma Tributária, surge uma insidiosa ameaça a economia brasileira: o Imposto Seletivo (IS). Proposto pelo Governo Federal no Projeto de Lei Complementar 68/24 (PLP 68/24), o IS, que foi originalmente concebido para desencorajar o consumo de produtos nocivos, como cigarros e bebidas alcoólicas, teve sua abrangência ampliada para englobar também bens minerais essenciais – como petróleo, gás natural e minério de ferro – com repercussão em toda a sua cadeia produtiva.
Tal expansão da incidência do IS suscita preocupações quanto à sua complexidade e abrangência, que parecem contrariar os objetivos centrais da Reforma, entre eles a simplificação. Em especial, há riscos de cumulatividade do imposto, além dos efeitos inflacionários. É crucial lembrar que esta Reforma, estabelecida pela Emenda Constitucional 132/2023, fundamenta-se em três princípios: simplificar o sistema tributário, evitar a acumulação em cascata de impostos sobre produtos e serviços e aumentar a eficiência na coleta e gestão dos tributos.
A implementação do IS, tal como proposta, desafia esses princípios, exigindo uma análise sobre suas possíveis repercussões econômicas. O PLP 68/24, ao buscar tributar insumos usados na própria atividade produtiva, contraria a intenção de simplificação, por exemplo. Isso ocorreria mesmo quando a cessão do insumo for feita sem ônus, o que poderia complicar ainda mais o sistema tributário. Além disso, o IS incluiria outros impostos e taxas em sua base de cálculo, insistindo na prática de tributar tributos – a notória “jabuticaba” brasileira, uma peculiaridade nativa que desafia a lógica econômica usual.
Não satisfeita, a proposta interpreta de forma controversa a regra de incidência única de impostos, prevista na Constituição. De acordo com o PLP 68/24, essa incidência única seria determinada exclusivamente pela classificação fiscal de cada produto. Isso implica diferentes formas do mesmo recurso natural sendo tributadas separadamente. Por exemplo, tanto o gás natural extraído quanto o gás natural liquefeito (GNL) seriam tributados, assim como o petróleo e o gás natural produzidos de forma associada.
Essa interpretação poderia levar à tributação de várias etapas dentro da mesma cadeia econômica, como se fossem atividades distintas, embora façam parte de um mesmo processo produtivo. Isso contraria o princípio da incidência única de impostos e pode resultar em um aumento da inflação e estímulo a Judicialização, além de desestimular um setor já sobrecarregado tributariamente. Segundo a Wood Mackenzie, a carga tributária no setor de petróleo e gás no Brasil varia entre 65% e 85%, dependendo do contrato (concessão ou partilha de produção) e do estágio de desenvolvimento do campo.
Ao aumentar o preço final dos derivados de petróleo e gás, como diesel, gasolina e GNV, o IS onerará a cadeia logística do país, afetando setores que dependem do transporte de cargas – agronegócio, mineração, alimentos e bebidas, construção, papel e celulose, petroquímico e varejo –, alguns sobre os quais incidiria o próprio imposto. O aumento nos custos de combustíveis também prejudica categorias socialmente vulneráveis, como caminhoneiros, taxistas, motoristas de aplicativos e motoboys, que têm pouca capacidade de absorver ou repassar esses custos adicionais.
Além disso, a proposta do governo inclui uma medida polêmica: a aplicação do IS sobre as exportações, uma ação proibida pela Constituição. Esta medida poderia desencorajar a venda de produtos brasileiros no mercado internacional, prejudicando a balança comercial e a política cambial do país.
Não foi por falta de aviso que esses riscos não foram mitigados. O Ministério de Minas e Energia (MME) já havia alertado o Ministério da Fazenda sobre o perigo de impor o IS especificamente na cadeia de petróleo e gás. Em uma Nota Técnica, o MME destacou os efeitos adversos dessa medida: a diminuição da competitividade da produção nacional, a redução no retorno e na atratividade dos campos de produção, aumento dos custos de geração termelétrica e diminuição na arrecadação dos governos estaduais e municipais.
O MME destacou um ponto crucial: cada real adicional arrecadado por meio desse imposto resultaria, na verdade, em uma arrecadação líquida menor para os cofres dos entes federativos. Isso ocorre porque o aumento do imposto reduziria a base de cálculo das participações governamentais, ou seja, estados e municípios acabariam coletando menos.
A maneira como o IS foi proposto levanta preocupações sobre suas verdadeiras intenções. Sem uma diferenciação adequada de alíquotas e a ausência de medidas compensatórias ou uma análise rigorosa dos impactos, parece que o foco é majoritariamente arrecadatório, em vez de possuir um caráter regulatório que poderia orientar comportamentos e práticas de mercado.
A complexidade, a instabilidade regulatória e a falta de transparência do IS, aliadas à sua natureza cumulativa, criam barreiras para investimentos e complicam o planejamento econômico. O PLP 68/24, ao deixar questões cruciais como a base de cálculo e as regras de recolhimento para futura regulamentação pelo Poder Executivo, perpetua a incerteza e dificulta a previsibilidade.
Revisar a regulamentação do IS é imperativo para garantir seu alinhamento com os princípios de simplificação e não-cumulatividade, pilares centrais da Reforma. Além disso, é crucial que o imposto desempenhe uma função regulatória, desestimulando o consumo de produtos nocivos sem sobrecarregar setores essenciais da economia que dependem desses insumos fundamentais. A reformulação do IS deve promover um ambiente fiscal menos oneroso e mais previsível, criando condições favoráveis para o crescimento sustentável.
Artigo escrito por Marcos da Costa Cintra, jornalista, mestre em Políticas Públicas (IE-UFRJ) e doutor em Energia (IEE-USP), é executivo do setor de petróleo, gás e energia, e Felipe Fernandes Reis é advogado e mestrando em Economia pelo IDP. Foi Membro do Grupo de Especialistas da Reforma Tributária da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, no qual coordenou o tema Imposto Seletivo.